Espaço Científico Cultural

CHAMBERLAND E O PARAÍSO PERDIDO

 

1a. Parte - Chamberland
capítulos LV a LXIV

Capítulo LV

      AGOSTO.

      ¾ Recebeu o cartão que eu lhe mandei, João?

      ¾ Pô, você me sacaneou, Coroa. Isso é coisa que se faça?

      ¾ O quê?

      ¾ Ainda pergunta? Você me mandou um cartão de Montreal à noite! E num dia de blackout! Não se via nada, tudo preto!

      ¾ Eu sabia que você ia gostar. Você deu o beijo que eu mandei pra Glorinha?

      ¾ Pô, outra sacanagem de sua parte. Sabe quem recebeu o cartão? Minha mãe! Você precisava ver a cara dela: Joãozinho, que história e essa de beijo na boca da Glorinha? Não gosto dessas coisas. Quem é esse seu amigo?

      ¾ Mas você não respondeu à pergunta que fiz ¾ falei.

      ¾ A Glorinha estava em São Vicente com a família. Eles foram dia 20 e o cartão chegou dia 23. Acho que eles voltaram ontem à noite.

      ¾ Acha? Sua namorada chega de viagem e você nem vai vê-la? João, não estou te conhecendo!

      ¾ A Glorinha não é minha namorada. Ou melhor, ainda não.

      ¾ Ah, entendo. Você passou as férias criando coragem. É, você está certo. Eu também demorei a me declarar.

      ¾ Olá, João! Olá, Coroa! ¾ Era o Cazuza. ¾ Como foram de férias?

Capítulo LVI

      18 DE AGOSTO.

      Estacionei o carro a uns cem metros da cantina do pai de João. A rua estava apinhada de veículos dos dois lados.

      A festa deve estar animada e a Glorinha já deve estar por aí, pensei. É hoje que eu apronto uma pro João.

      João estava bem na entrada.

      ¾ Jooããããoooo..., dê cá um abraço! Meus parabéns!...

      ¾ Obrigado, Coroa.

      ¾ Dezoito anos, heim,... Quem diria? O garotão está crescendo!

      ¾ Você demorou! ¾ exclamou João. ¾ Eu já estava ficando preocupado. Ah, essa é minha mãe. Mãe, esse é um grande amigo do Cursinho. Foi ele quem me mandou o cartão de Montreal.

      ¾ Muito prazer, Rosalinda. O João fala muito no senhor, mas eu fazia uma imagem totalmente diferente. Prefiro a que estou vendo. Com licença, estão chegando mais convidados.

      ¾ Esteja à vontade, dona Rosalinda.

      E assim que ela se afastou:

      ¾ Pô, João, você me colocou numa gelada com a sua mãe! Isso não se faz!

      ¾ É, meu, sacanagem com sacanagem se paga, certo? Agora estamos empatados. Mas vamos pro salão dos fundos. A juventude está lá. Aqui só tem coroas e eu sei que você prefere os jovens. E além do mais, você precisa ver o que eu ganhei.

      ¾ Ah, eu ia me esquecendo. Isto é pra você.

      ¾ Ora, não precisava se preocupar.

      ¾ É apenas uma lembrancinha. Trouxe do Canadá.

      No meio do salão estava uma linda moto, novinha em folha. E ao seu lado...

      ¾ Simão, meu velho! ¾ exclamei. ¾ Há quanto tempo? Você não apareceu mais!... Olá, Rodrigo. Olá... você é a Aninha, não é?

      ¾ Doutor, ¾ falou o Simão, ¾ você precisava ver que delícia ficou o yakisoba. Segui a sua receita direitinho.

      ¾ Ora, quando a mão é boa, Simão, ¾ falei, ¾ qualquer receita... Oi Cazuza... olá Simone! ¾ Baixei a voz, me dirigindo ao João: ¾ esse aí que está com a Simone é o Rabelo?

      ¾ Sim, Coroa, ¾ respondeu João, ¾ mas vem dar uma cheiradinha na minha moto, como diria o Osvaldo. O que você acha?

      ¾ Linda máquina, João!

      ¾ É uma XL250, ¾ emendou João.

      ¾ XLona, ¾ acrescentou Rodrigo; ¾ nem dá pr'acreditá!

      ¾ Ora, eu não entendo de moto, ¾ falei, ¾ mas que é bonita, isso lá é.

      E então sussurrei ao ouvido do João:

      ¾ Por falar em máquina, onde está a Glorinha? Você ainda não me apresentou.

      ¾ Não pôde vir. Está com rubéola.

      ¾ Whisky, senhor? ¾ era o garçom.

Capítulo LVII

      ALGUNS DIAS depois encontrei João na lanchonete do cursinho:

      ¾ Quando é que você tira a carta, João?

      ¾ Daqui a uns cinco dias, acho.

      ¾ E ainda não deu vontade em você de sair com a moto?

      ¾ Sim, mas o meu pai a mantém a sete chaves. O coroa é legal e eu quase consegui dobrá-lo; mas a minha mãe entrou em cena e estragou tudo. Dizem que a minha mãe ficou furiosa quando viu a moto. De lá pra cá, todo dia ela me faz recomendações. E é sempre a mesma ladainha.

      ¾ Ela está certa, João. Eu conheço os perigos de uma moto.

      ¾ Você já teve moto, Coroa?

      ¾ Não, mas eu trabalhei oito anos em Terapia Intensiva, na Beneficência Portuguesa.

Capítulo LVIII

      SÁBADO.

      ¾ Mestre, tem um garoto de moto querendo falar com o senhor, ¾ era o porteiro do meu prédio pelo interfone.

      ¾ Ora, eu não estou esperando ninguém... Como ele é?

      Pausa.

      ¾ Ele diz que se chama João e...

      ¾ Oh, mas é claro, mande-o subir. Ah, seu Benedito, será que daria para o senhor quebrar um galho para mim?

      ¾ Pois não.

      ¾ Então deixa o João colocar a moto na minha garagem, atrás do meu carro.

      ¾ Mas...

      ¾ Eu sei que não pode, seu Benedito, mas é só uma vez. A moto dele é nova e o garoto não deve ter experiência em...

      ¾ Tá legal, eu dou um jeito. Mas é só dessa vez, heim!

      ¾ Obrigado, seu Benedito.

Capítulo LIX

      ¾ JOÃO, QUE SURPRESA! Eu estava preocupado. Você não foi ontem ao cursinho. Até o Giba estranhou.

      ¾ Olhe o que eu fui buscar, ¾ e mostrou-me a carta. ¾ Não agüentei esperar até segunda-feira para lhe mostrar. Venha me ver andar de moto, Coroa, é o maior barato. Estou estreando ela agora.

      ¾ Logo mais. Primeiro vamos comemorar com um cafezinho, já que estou sem champanhe.

      ¾ A patroa está?

      ¾ Não, ela saiu com as meninas.

      ¾ Quantos anos têm suas filhas, Coroa?

      ¾ Dezenove e dezesseis.

      ¾ Pô, e você disse meninas?... Você está casado há tanto tempo assim?

      ¾ Vinte anos.

      ¾ Pois não parece. Em julho parecia que você ia viajar em lua de mel. Você deve gostar muito da Coroa.

      ¾ Por falar nisso, como é que vai a minha afilhada?

      ¾ Quem?

      ¾ A Glorinha! Se eu não for o padrinho não tem casório. Ela já sarou?

      ¾ Assim você está parecendo o Xarope, Coroa.

      Era uma brincadeira, mas se eu soubesse o que o destino estava me preparando, não teria brincado dessa maneira. E, no entanto, suas malhas estavam prestes a me sufocar.

      Após o café o João começou a observar a proximidade de onde estávamos:

      ¾ Bonito o seu apartamento, Coroa. Quantos livros! Onde é que você estuda?

      ¾ Em qualquer lugar. No quarto, na sala de jantar, ou mesmo aqui, na sala de música, ¾ falei enquanto abria uma porta.

      ¾ Puxa! Mais livros! Ô, que piano bonito! Toca uma música pra mim.

      ¾ Só se for o bife. Aqui quem toca piano é a Coroa.

      ¾ Hei, Coroa, me empresta esse livro do Newton?

      ¾ Pode ficar para você.Esse eu tenho em duplicata.

      ¾ Legal. Eu sou chegadão no Newton e você é o responsável. Desde que eu assisti o seu curso...

      ¾ Já percebi isso.

      ¾ Então vamos descer. Estou com saudades da minha moto. Faz vinte minutos que não a vejo.

Capítulo LX

      CARO LEITOR. Sabe lá você o que é ficar de março a agosto ouvindo um garotão de dezessete anos falar no sorriso, nos lábios, no..., e nas pernas da Glorinha? E sem ao menos conhecê-la? Pois eu fiquei! E isso eu estou dizendo porque ouvi as suas queixas e concordo plenamente com você: o livro está ficando monótono, para não dizer chato.

      Mas o que é que eu posso fazer se o João não quer entrar na minha?... Ou melhor, na da Glorinha? Eu bem que tentei e você é testemunha, mas foram tantos os obstáculos: a amizade por Rodrigo e Simão, o cursinho, a Lucíola, a rubéola, o misticismo... E agora a moto!

      É verdade que um dia eu conheci Glorinha e chegaremos lá; mas as condições me foram bastante adversas. Meu! Que xuxu! Que pedaço de mau caminho! Que olhos! Que pernas, meu! Que...! Que... abundância de feminilidade! E, não obstante, o João não conseguia ficar vinte minutos afastado de sua moto. Pode? Mas você não precisa se preocupar com isso. Não, o João não me decepcionou. Um dia ele chegou lá. Só não pensei que ele fosse chegar com tudo.

      Vamos então evoluir.

Capítulo LXI

      TUDO COMEÇOU NA aula do Zé Renato. O Zé Renato semanalmente, e durante o ano todo, nos passava, como lição de casa, uma redação. Você já teve oportunidade de ler uma delas, feita pelo João: "O Consumismo". Naquele dia, uma quarta-feira, o Zé Renato colocou no quadro negro o tema da redação da semana:

"Se..."

      ¾ Se o quê, professor? ¾ perguntou o Xarope.

      ¾ Se. Apenas se. Nada mais, ¾ respondeu.

      É, não vai ser mole, pensei. Se até o Xarope estranhou, que diríamos nós? E, com efeito, no intervalo, o consenso geral dos personagens deste livro era: o Zé Renato tá pinel.

      Era comum que estranhássemos. Aliás, qualquer tema de redação, à primeira vista, parece ser complicado. Após alguns minutos as idéias surgem e, com o tempo, vão se encaixando e atraindo novas idéias. E a redação sai. Convenhamos, no entanto, que o desafio agora fora grande.

      Lembro-me ainda de que nesse dia o João andava com um livro de profecias embaixo do braço. Questionei-o e ele me disse que o livro havia sido emprestado pelo Rodrigo. E mais, durante as férias havia lido pelo menos uns dez livros do gênero, quase todos da mesma origem, ou seja, da biblioteca do pai do amigo. Tentei dissuadi-lo dessa nova moda, atraí-lo novamente para o estudo de coisas sérias e convencê-lo a abandonar a literatura marginal, pelo menos até que o vestibular passasse, mas nada. João parecia possuído.

      Pensei então em adotar a tática número 5 do meu arsenal: vou tirar o sarro do João. Eu não me chamo Coroa se ele não entrar na minha.

      Acho que a brincadeira surtiu efeito. Mas aconteceu de forma tão rápida que eu fiquei em dúvida quanto à importância do meu papel. Vamos então passar a palavra ao João. Estamos no dia seguinte, quinta-feira. Fala João!

Capítulo LXII

      AQUELE DIA o Paulão se superou. O sinal tocou e a classe permaneceu calada, como a querer mais.

      ¾ Tchau, gente! A semana que vem continuamos com o Segundo Reinado.

      E dizendo essas palavras saiu.

      No pequeno intervalo que antecedia a terceira aula do dia, mergulhei em seus ensinamentos e procurei recompor os tópicos essenciais de sua mensagem:

"O dia em que você entender a ignorância do caboclo, perceber sua importância no contexto nacional e sacar que de alguma forma, e em detrimento dele, você foi um privilegiado, quem sabe possa, ao cruzar com ele, dizer: Hei, amigo, dê cá um abraço! Deixemos as diferenças de lado e vamos construir um Brasil diferente. Vamos dar as costas para o mar e olhar para o interior. Deixemos o oceano para trás, com todas as desgraças que ele já nos trouxe."

      Dei as costas para o mar e enxerguei a Barretos de meu pai. Imaginei-me lá, longe desta loucura que é São Paulo. E senti saudades do que não conheci. E então fui mais além. Sobrevoei o cerrado e detive-me no coração do Brasil, às margens do Araguaia. Como é mesmo o nome da cidade onde mora a cunhada do Coroa? Ah, sim. Algum dia estarei em Barra do Garças com Glorinha.

      Neste momento o Chico Nery entrou na classe e o Cazuza, que também ficara impressionado com a aula do Paulão, me acordou com uma pergunta:

      ¾ Na sua opinião, qual é o melhor professor do Cursinho?

      ¾ Talvez o Paulão, ¾ falei, ¾ talvez o Chico Nery..., talvez... Olhe, quer saber, o Anglo formou uma bela seleção. São todos iguais, embora cada um tenha o seu estilo.

Capítulo LXIII

      AO VER QUE o Chico Nery se aproximava, joguei o cigarro e entrei na sala. Passei por Cazuza e João a tempo de escutar o pequeno diálogo entre eles. Parei para ouvir a resposta de João e, ao término falei:

      ¾ É isso aí, bicho.

      ¾ Boa tarde. ¾ Era a voz do Chico Nery que vibrava atrás de mim. ¾ Onde paramos?

      ¾ Dirigi-me às pressas para o meu lugar e abri a apostila no setor 41: Geometria.

Capítulo LXIV

      ¾ OLÁ, COROA, ¾ disse João enquanto nos dirigíamos para a lanchonete. Gostou da aula? O Chico hoje entrou na sua área.

      ¾ Jamais pensei aprender algo de medicina numa aula de Geometria de cursinho, falei. ¾ O Chico é bom mesmo. Um X-maionese e um suco de laranja, ¾ pedi ao caixa.

      ¾ Recebi o sanduíche e me dirigi a uma das poucas mesas que ainda estavam vagas. João chegou logo depois:

      ¾ O Rodrigo hoje me emprestou um livro do pai dele sobre as profecias de São Malaquias, Coroa, ¾ falou João. ¾ Você sabia que quase todas já foram cumpridas?

      É hoje, pensei. Te segura, João.

      ¾ Eu não me preocupo com isso, João, ¾ falei.

      ¾ Mas é bom começar a se preocupar. Eu acho que o fim do mundo está próximo e pelo visto só está faltando uma coisa...

      Era a deixa que eu esperava.

      ¾ O Maluf ganhar a eleição? ¾ perguntei.

      ¾ Você está brincando com coisa séria, Coroa. O apocalipse está na Bíblia. O que está faltando para o fim do mundo é a vinda do Anticristo.

      ¾ Pois eu acho que se ele aparecer aqui no Brasil nóis avacalha com ele. Entre o Anticristo e o Lula, eu sou mais Lula.

      ¾ Você não está mesmo a fim de levar um papo sério, não é Coroa?

      ¾ Ora, porque você não falou antes, João, eu achei que você estava gozando com a minha cara. Vamos lá, o que é que você quer saber?

      ¾ Nada, não, deixa para outro dia; agora você me esfriou.

 

 

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