Espaço Científico Cultural

CHAMBERLAND E O PARAÍSO PERDIDO

 

1a. Parte - Chamberland
capítulos LXV a LXXII

Capítulo LXV

      SEXTA FEIRA, manhã.

      Acho que não vou conseguir fazer esta redação, pensei. Estou sem inspiração nenhuma. Bloqueado mesmo, como diria o Coroa. Será que é o tema que é difícil? Ou é a Glorinha que não me sai da cabeça?

      Sim, é a Glorinha. Ela ontem estava linda. Acho que o Coroa está com a razão. Flagrei-a olhando para mim. O que eu não daria para decifrar o que estava por trás de seu olhar?

      Preciso me encorajar! Afinal, os livros do pai da Glorinha já estão acabando; e este curso que o Rodrigo foi inventar agora não há meio de terminar; daqui a pouco eu não vou ter mais motivos para aparecer lá à noite. E sou obrigado a ler os livros porque o Seu Domingos sempre pergunta o que eu achei. O pior de tudo é que estou gostando do assunto. Até o Coroa já percebeu e está de bronca comigo.

      Mas ontem valeu a pena. Eu acabara de depositar o livro na estante e... Acho que a Glorinha ruborizou com o flagra, mas eu estava tão fora do ar que nem deu para perceber. E depois, então, ela toda meiga falou, talvez para consertar a situação, talvez para... sei lá:

      ¾ Joãozinho, você não está exagerando? As férias já acabaram.

      Se não é o Seu Domingos estar presente?... Mas hoje é sexta-feira; dessa noite eu não passo. Glorinha, te segura, o João vai atacar. Seja o que Deus quiser!... Seja?... Sim,

Se o tema é se, que seja!

      É isso ai! Vou fazer uma poesia para a Glorinha.

Capítulo LXVI

      SE... SE A GLORINHA estiver a fim, que bom será. Será que eu vou ter coragem? Sim, vou, tem que ser hoje. É tudo ou nada. Vai ser difícil mas...

Seguirei serrada senda.

      Boa! É isso aí, um triplo se. Agora vejamos...

Que me lembra o se?

      É melhor pegar o dicionário. Onde será que a Aninha o colocou?... Ah, está aqui. Deixe-me ver: p, r, s, sa, se, semana, semba...

Semblante?

      Sim, quero ver o semblante da Glorinha quando eu me declarar. Semente, senão, seno...

Sensação?

      Sensação é o que eu vou sentir hoje. Fico todo arrepiado só de ver a Glorinha. Ser, série, seriema... A Glorinha é um...

Serpe?

      Serpe não! A Glorinha é um amor. Mas bem que ela está me tentando, tal e qual a serpente bíblica.

      ¾ Joãozinho, querido, o almoço está na mesa, ¾ interrompeu-me minha mãe.

Senhora!

      ¾ Senhora não! A Glorinha tem apenas dezoito anos. Mas senhorita não dá encaixe.

      ¾ Joãozinho, ¾ insistiu minha mãe, ¾ a comida vai esfriar.

      ¾ Já vou, mãe, ¾ gritei.

      Agora quem esfriou fui eu. Mas tarde eu termino. A redação ainda é para quarta-feira.

Capítulo LXVII

      ALMOCEI RAPIDAMENTE e sai. Estava em cima da hora. Subi na moto e pensei: Vou dar uma passadinha pela casa da Glorinha, bem rápido. Quem sabe eu consiga vê-la, nem que seja de relance. Não, a essa hora é capaz dela estar almoçando. Mas ela há de ouvir o ronco da moto. Mais tarde eu pergunto se ela ouviu e digo que fui eu...

      ¾ Glorinha! Que surpresa agradável? ¾ Desci da moto e falei: ¾ Passei a manhã inteira pensando em você. Imaginei-a linda, mas você está divina. Fui injusto em meu sonho.

      ¾ Ora, e não é que o João está virando galanteador? Quem diria?

      Emplaquei, pensei. O tom de voz e o sorriso de Glorinha me certificavam disso.

"Abra-te sésamo!" Seja esta a hora.

      ¾ Não é galanteio, ¾ falei, ¾ é a pura verdade.

      ¾ É, mas você nem se lembrou de me levar a passear na sua moto. Aposto que as garotas do cursinho já...

      ¾ Ora, querida, é pra já.

Seqüestre-me!

      ¾ Agora não, João, você vai perder a aula.

      ¾ Agora sim. Quero te mostrar o que eu faço com as garotas do cursinho; ¾ explorei o seu ciúme.

      ¾ Não, João, não quero atrapalhar. Você anda estudando tanto que...

      ¾ Já atrapalhou. O que você tem a fazer agora é consertar. Não adianta nada eu ir para o cursinho nesse estado. Eu te amo. Vamos!

      O medo que o momento escapasse fez com que eu me precipitasse. A expressão de espanto que Glorinha fez me provocou um frio na barriga. Pronto, pensei, pus tudo a perder. Mas não. Glorinha sorriu e, completamente entorpecida, sussurrou:

      ¾ Vamos.

Capítulo LXVIII

      DEI A PARTIDA na moto e fomos em direção ao viaduto da Vila Prudente.

      ¾ Segure firme, ¾ falei.

      E Glorinha obedeceu. Obedeceu até demais. Cheguei a sentir sua respiração na minha nuca. E a seguir um beijo nas costas. Reduzi a velocidade e pensei:

Seduza-me!

      Mas prossegui em marcha lenta, indiferente aos carros que me ultrapassavam.

      ¾ Está gostando do passeio, Glorinha? ¾ gritei.

      Como resposta mais um beijo e um abraço apertado, quase a me sufocar. Senti seus seios roçarem minhas costas. Prossegui por mais alguns quilômetros. Estava bom demais para ser verdade. Belisquei meu braço direito e senti. Sim, ali estávamos. De repente veio-me um desejo premente de abraçar Glorinha de frente. Sim, concluí:

Sequioso anseio em seios seus
Sentir sensuais carinhos.

      Estacionei.

      ¾ Glorinha..., sinto como se estivesse esperando por você há um século.

      ¾ Então vamos matar a saudade, ¾ respondeu.

      Beijamo-nos. Cinco minutos após eu me dei conta de onde estávamos: no acostamento da Via Anchieta. Olhei para um dos lados e vi... Não, nem pensar.

      Glorinha também olhou para lá. Uma vez,... duas,...

      ¾ Você está pensando o mesmo que eu? ¾ falei temeroso.

      Seu silêncio pareceu-me revelador. Sai tentação, pensei. Mas não, a idéia me obcecava. Estive prestes a dizer:

Se me permite, destarte ainda espero
Que a doce sentença nos leve ao sexo.

      ¾ Foi quando ouvi a resposta a minha pergunta:

      ¾ Sim, vamos.

      Era um motel. A menos de um quilômetro de onde estávamos.

Capítulo LXIX

      ¾ QUE LOUCURA, meu Deus! O que eu fui fazer? Glorinha, me perdoe...

      ¾ Não se arrependa, meu bem, já aconteceu. E foi bom.

      E dito isso Glorinha me sufocou com outro beijo, melhor que os anteriores. E mais outro. E outro mais. Extasiei-me de amor e de um suceder de emoções jamais sentidas. Senti-me perdido e pensei:

Senil se me parece meu sensório:

      Sim, senti-me perdido no tempo e no espaço. Terrivelmente, apaixonadamente perdido. Ao lado de Glorinha...

...Quando uma hora tem sabor de um século
Temporalmente passa-se um segundo.

Capítulo LXX

      AS SEIS HORAS da tarde retornamos.

      ¾ Glorinha, onde você esteve? ¾ era o Rodrigo ¾ Mamãe está preocupada.

      ¾ Fomos ao Shopping Norte, cunhado, ¾ respondi.

      ¾ Cunhado?... Vocês foram ao cinema, não é? Qual foi o filme?

      ¾ Sublime tentação, ¾ respondi.

      ¾ Hei, esse filme não está em cartaz! ¾ estranhou Rodrigo.

      ¾ E quem disse que nós vamos ao cinema para assistir ao filme? ¾ concluiu Glorinha sorrindo.

      ¾ Até mais, querida. Vou jantar e volto. Às onze o quarteto se reúne. Seria bom que o Simão levasse a Rosângela, não acha? Assim poderíamos brindar ao nosso amor. Tchau Rodrigo.

Capítulo LXXI

      NO DIA SEGUINTE, pela manhã, terminei a poesia. Dei-lhe um título e saí correndo, para mostrar a Glorinha:

 

 

Soneto em Se Maior

Se o tema é se, que seja! Seguirei
Serrada senda. Que me lembra o se?
Semblante? Sensação? Serpe?... Senhora!
"Abra-te sésamo!" Seja esta a hora.

Seqüestre-me, seduza-me, sequioso
Anseio em seios seus sentir sensuais carinhos.
Se me permite, dest'arte ainda espero
Que a doce sentença nos leve ao sexo.

Então, senil parece meu sensório:
Quando uma hora tem sabor de um século,
Temporalmente passa-se um segundo.

Sim! Senescente se me comportei:
Tomei da sege que se me surgiu
E ao invés do se, meu tema foi você.
.

 

      Glorinha sorriu quando lhe entreguei a síntese poética de nosso encontro. Seus olhos, tão lindos, brilharam, e o conjunto me pareceu muito mais que simples pernas. Feliz da vida, lamentei o destino de José e Simão:

E agora, Simão?
Desculpe-me, mas
Platão hoje, já era:
Amor é paixão!
E agora, José?
Sua história nem bem
Começou, e já acabou:
Glorinha agora é só minha!

Capítulo LXXII

      SEGUNDA-FEIRA.

      ¾ Bonito, João! Parece uma poesia moderna com estilo clássico. E ainda, pela temática, não deixa de ser uma cantiga de amor, embora com versos decassílabos e sem refrão nem paralelismos.

      ¾ E é uma cantiga de amor. Eu a fiz para a Glorinha!

      ¾ Tal e qual um trovador, ¾ acrescentei.

      ¾ Só não gostei do termo senhora, do terceiro verso, ¾ falou João. ¾ Mas por uma questão de métrica eu não quis mudar.

      ¾ Não há porque se preocupar, João, senhora é uma palavra sublime e, nas cantigas de amor, os trovadores se dirigiam às amadas chamando-as assim. Não há nada errado. O seu soneto é uma síntese de três tempos literários. Porque você não o mostra para o Medina? Ele poderá confirmar ou não o que estou falando. Mas independentemente disso, e em termos de beleza, não há o que discutir. Linda poesia. Mas... a Glorinha vai ruborizar quando vir...

      ¾ Eu já mostrei para a Glorinha.

      ¾ Menina de sorte! Que paixão, João! Só mesmo um grande amor poderia resultar nisso. Quantas aliterações amorosas!

      ¾ Sim, mas quem ganhou a sorte grande fui eu.

      ¾ Já notei, está escrito nos seus olhos. Não precisa dizer mais nada.

 

 

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Capítulo LXXIII

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