A Estrutura da Luz e a Interação Luz-Matéria

Alberto Mesquita Filho     
outubro de 2017
Página 4

 

 

 

 


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5 - A interação do tipo IV

5.1 Generalidades

Como veremos oportunamente, a interação do tipo IV é um caso particular da anterior (III) porém, e para que possa ser entendida como tal necessitamos, primeiramente, esclarecer melhor os fenômenos reflexão e refração sob o prisma da teoria corpuscular da luz.

Reflexão e refração são costumeiramente considerados fenômenos a ocorrerem exatamente no local em que um raio de luz toca a superfície de separação entre dois meios 1 e 2. A figura 44 retrata o que seria visto quando um feixe de luz bem fino incide sobre um ponto A da superfície considerada.

Figura 44

Figura 44: Reflexão e refração

Não obstante, como vimos nos itens anteriores, a experimentação sugere que o desvio do raio de luz, a caracterizar a refração, deve se dar um pouco antes do raio atingir a superfície, ou seja, antes de chegar ao ponto A. O processo é contínuo de forma a encurvar o raio enquanto estiver sobre o efeito de um campo refrator. No meio 2 ele recupera o caráter retilíneo e prossegue seu trajeto, agora segundo uma direção a formar com a normal à superfície de separação entre os meios, um ângulo de refração diverso do ângulo de incidência (ou seja, aquele que o raio original, antes da curvatura, forma com a normal à superfície). Embora isso já tenha sido profusamente comentado e ilustrado nos itens anteriores, convém apresentarmos mais uma figura (figura 45) destinada a facilitar o entendimento do que será discutido a seguir.

figura 45

Figura 45: Reflexão e transmissão da luz em aumento
hipotético a ilustrar o encurvamento do raio de luz.

O desvio, a caracterizar a refração, ocorre principalmente enquanto o raio está no meio 1 e é devido ao que chamamos por interação do tipo I. Após sofrer este desvio o raio tanto poderá ser refletido em A (permanecendo no meio 1) quanto transmitido (adentrando e prosseguindo no meio 2), e o que irá determinar essa “escolha” não é mais o campo refrator. Conquanto possamos continuar chamando o raio transmitido por raio refratado, haja vista ele conservar o desvio que caracteriza o fenômeno refração como um todo, a verdade é que transmissão e desvio a caracterizar a refração são coisas distintas. Em outras palavras, em A não ocorre refração e sim transmissão (o raio não muda de direção pelo fato de ser transmitido). Sutileza, sim, porém importante para que se entenda que em A está acontecendo um fenômeno ora a permitir que o raio de luz ultrapasse esse ponto, ora não.

Raciocinando desta maneira concluímos que a reflexão e a transmissão estão na dependência de outro tipo de interação entre o raio de luz e a matéria constitutiva da superfície de separação entre os meios, nas vizinhanças do ponto A. A esta interação chamarei por interação do tipo IV. O tipo de interação é o mesmo, tanto na reflexão quanto na refração e, como diria Newton, os corpos refletem e refratam [no sentido de transmitem] a luz em virtude de uma mesma força, exercida variadamente em variadas circunstâncias [38].

5.2 Tipos de Reflexão e Refração

Na maioria dos tópicos deste artigo a reflexão ou a refração encaixam-se no que poderíamos chamar por reflexão ou refração regular e produzida quando raios de luz incidem sobre uma superfície muito lisa e polida. Esta é uma situação ideal e que, a rigor, não ocorre na prática. Via de regra as superfícies dos sólidos são ásperas ou rugosas, produzindo o que poderia ser chamado por reflexão ou refração difusa. Não obstante, é possível realizar experiências em situações muito próximas da idealidade através do polimento da superfície e é o que se faz na prática, obtendo-se então reflexões ou refrações praticamente regulares. A título de completar a classificação, citaria ainda a reflexão ou refração seletiva, observada quando uma superfície reflete ou refrata apenas luz de determinadas cores.

5.3 Em busca de um princípio a elucidar o binômio reflexão-transmissão

5.3.1 Sobre a porosidade dos corpos

Sabemos hoje que a matéria constitutiva dos corpos é descontínua, havendo muito mais espaço entre uma partícula e outra do que o espaço ocupado pelas partículas. Isto ocorre em todos os níveis que conseguirmos imaginar como: 1) o espaço entre as moléculas de um corpo; 2) o espaço entre os átomos de uma molécula; 3) o espaço entre os elétrons na eletrosfera; 4) o espaço entre o núcleo e os elétrons; e 5) o espaço entre as partículas nucleares. Poderia ir além, mas aí já estaria provavelmente entrando no terreno das especulações.

O que chega a ser pouco comentado é que muito do que hoje se sabe sobre esta descontinuidade foi amplamente demonstrado experimentalmente, ainda que de maneira indireta, por Newton, através de um elevado número de experiências de Óptica. Vale a pena ler a discussão da Proposição VIII do livro Opticks, onde, de forma magistral, ele justifica, utilizando sete ou mais experiência descritas em outros capítulos do livro, como os corpos são muito mais rarefeitos (mas muito mesmo) do que se acreditava na época. Em virtude desta porosidade incomensurável, Newton afirma que a causa da reflexão não é o impacto da luz com as partes sólidas ou impermeáveis dos corpos, como geralmente se acredita [39] (ou se acreditava na época).

5.3.2 Sobre a interação propriamente dita

Graças a essa rarefação incomensurável, os raios da luz material, qualquer que seja a sua cor, seriam capazes, em teoria, de atravessar o mais denso dos materiais que conhecemos, sem que houvesse qualquer colisão. Como isso geralmente não acontece, e quando acontece (corpos transparentes, por exemplo) o atravessamento via de regra se dá de forma parcial, há que se pensar em algum princípio a governar o binômio reflexão-transmissão (deixaremos a absorção para ser discutida oportunamente), princípio este a responder pelo que estamos chamando por interação do tipo IV. Ou seja, reflexão e refração ocorrem em virtude de um mesmo tipo de interação, ainda que exercida em circunstâncias variadas [40].

Em busca deste princípio Newton realizou inúmeras experiências a produzirem o que se convencionou chamar anéis de Newton. Os livros atuais ora dão ênfase ao caráter estético dessas experiências (de fato, são muito bonitas), ora procuram demonstrar que elas estão em acordo com a interferência, a justificar a luz ondulatória. São raríssimos os textos a mostrarem que Newton não estava preocupado em produzir uma obra de arte e muito menos a justificar uma teoria que desacreditava. Muito pelo contrário, o princípio procurado por Newton dava corpo a sua ideia de luz material. Vou tentar expor isso no próximo subitem e, vez ou outra, adotar uma interpretação atualizada.

5.3.3 Reflexão e refração em lâminas transparentes delgadas

Vamos primeiramente tentar entender o que são lâminas transparentes delgadas, objetos de estudo deste e dos próximos três subitens. Para tanto utilizarei uma das receitas formuladas por Newton [41]. Sejam dois prismas 1 e 2, dotados de uma das faces ligeiramente convexa e colocados em contado através dessas faces, como mostra a figura 46. Uma pequena camada de ar irá se formar entre os prismas, mostrada em azul claro. Temos então um sistema óptico formado por dois meios: 1) uma delgada lâmina de ar (meio 1) de espessura variável e envolvida por 2) duas superfícies de vidro (meio 2).

Figura 46

Figura 46: Exemplo de equipamento utilizado
no estudo de lâminas transparentes delgadas.

Comprimindo os prismas, um contra o outro, e fazendo um feixe de luz incidir na face inferior do prisma 1, ocorrerá aí uma refração significativa, adentrando o feixe no prisma 1 e dirigindo-se para a face oposta, aquela que limita inferiormente a lâmina delgada de ar. Os raios deste feixe refratado no prisma 1 e que atingem a região de contato entre os dois prismas, prosseguirão no seio do prisma 2 sem desvios, como se a região de contato representasse um pedaço contínuo de vidro. Ocorre aí uma transmissão sem refração. Ou seja, é como se a luz simplesmente estivesse se propagando em um meio formado por um único vidro.

Se ajustarmos a luz incidente de forma que o feixe refratado no prisma 1 atinja a face oposta em um ângulo tal que, em condições normais, seria totalmente refletida (ângulo de incidência acima do ângulo crítico), ainda assim os raios serão transmitidos e sem sofrer desvios nesta região de contato entre os prismas. Neste caso, um observador situado além do prisma 2 (observador O1 na figura 46) terá a sensação de enxergar um orifício na lâmina delgada de ar. Através desse orifício, a simular uma mancha transparente no sistema óptico considerado, objetos afastados e aquém do prisma 1 poderão ser vistos distintamente pelo observador O1. Uma situação equivalente a essa foi mostrada na figura 21 (dois vidros em contato) e descrita no item 2.3.3. Comprimindo-se os prismas com uma força maior, o orifício torna-se mais amplo. Nestas mesmas condições, o outro observador (O2 na figura 46) receberá os raios totalmente refletidos na face interna do prisma 1 (não representados na figura), porém enxergará uma mancha central escura e correspondente à região em que os prismas entram em contato.

Mudando-se a obliquidade do feixe incidente de forma a que não ocorra mais a reflexão total, os raios de luz que não passam pela região de contato serão agora transmitidos. Os desvios devidos à refração serão extremamente pequenos a ponto de poderem ser desprezados. Isto porque a camada do meio ar a produzir o campo refrator (conforme a figura 45) é extremamente pequena, e as camadas do meio vidro (prisma) estão muito próximas e tal que o campo resultante seja muito pequeno. Os raios transmitidos e/ou refratados entrarão agora na fina lâmina de ar e o que acontecerá a partir desse ponto será objeto do estudo que se segue. Antes, porém, vale a pena comentar que os dois observadores (O1 e O2) irão visualizar o que se convencionou chamar por anéis de Newton, ainda que com cores diversas.

Esses anéis já eram conhecidos em tempos remotos e bem anteriores a Newton. Os observadores perspicazes atuais, ainda que desconheçam a física, já devem ter visto anéis concêntricos e coloridos formados em bolhas de água com sabão; e estas não deixam de ser lâminas transparentes e delgadas de água. Isto não era nenhuma novidade no século XVII. Não obstante, foram contemporâneos de Newton que trouxeram o assunto para a seara da física, através do estudo de outras lâminas delgadas, como aquela descrita acima. Boyle parece ter sido o primeiro a descrever e tentar interpretar o fenômeno, mas foi Hooke quem primeiramente reconheceu tratar-se de um fenômeno físico fundamentalmente diferente da dispersão (figura 29) e a exigir uma diferente explicação física [42]. Newton, leitor assíduo dos trabalhos de Boyle e Hooke, promoveu um avanço notável no estudo das lâminas transparentes delgadas, graças ao desenvolvimento de um método experimental para medir a espessura da lâmina que produzia as cores [42]. Conseguiu desta maneira estabelecer as bases experimentais para sua nova teoria da luz.

5.3.4 Anéis de Newton

Dentre as inúmeras experiências efetuadas por Newton e relacionadas ao assunto abordado no subitem anterior, vou selecionar algumas poucas, ainda que suficientes para que possamos prosseguir com o estudo da interação tipo IV. Em algumas dessas experiências ele utilizou um vidro plano-convexo (de convexidade esférica e raio R conhecido) colocado sobre outro vidro plano, criando assim entre eles uma fina lâmina plano-côncava de ar, como mostra a porção superior da figura 47 [43]. Para não alongar muito a temática, irei analisar apenas o que foi obtido nos casos em que a luz era de apenas uma cor (luz monocromática), pois que são suficientes para as finalidades de nosso estudo.

Figura 47

Figura 47: Anéis de Newton (parte inferior da figura) produzidos
por luz monocromática incidindo em uma lâmina de ar delgada
(parte superior da figura).

Se um feixe de luz monocromática incidir sobre este sistema óptico de cima para baixo, olhando-se por cima observa-se a luz refletida formando anéis como esquematizados na porção inferior da figura 47. Os anéis claros têm a cor da luz utilizada e correspondem à luz que foi refletida pelo sistema e que voltou para cima. A mancha central e os anéis escuros retratam ou ausência ou grande redução da luz refletida (os raios correspondentes foram transmitidos ou refratados, ou seja, foram para baixo). Olhando-se o conjunto por baixo tem-se a imagem complementar, não representada na figura.

Um dos méritos de Newton, nesta experiência, foi conseguir calcular matematicamente as distâncias extremamente diminutas BC, DE, FG, etc. mostradas na figura 47 [BC é da ordem de 2000 a 3500 angstrons (A), em que 1A = 10-8cm]. Seu insight foi perceber que essas distâncias d eram na realidade flechas ou sagitas de um arco, podendo ser obtidas geometricamente. Medindo o diâmetro D de cada anel e conhecendo o valor do raio R da lente de convexidade esférica, d pode ser calculado através da relação ou fórmula sagital. Para os que não conhecem esta relação geométrica, a demonstração está ao lado da figura 48. Notar que ela é válida para D << 2R, condição em perfeito acordo com os valores experimentais. No caso da figura, o valor de d seria a solução da equação sem a aproximação efetuada.

Figura 48
Figura 48: Dedução da fórmula ou relação sagital.

Voltemos à discussão concernente ao que mostra a figura anterior (figura 47). Newton observou que os quadrados dos diâmetros D (não confundir com o ponto D da figura 47) dos anéis, correspondentes ao centro das manchas claras e escuras, estavam na progressão aritmética dos números 1, 2, 3, 4, 5..., etc. Consequentemente, e como mostra a relação sagital [d = D²/8R)], as distâncias BC, DE, FG, HI, KL, ..., mostradas na figura 47, devem estar também nesta mesma progressão aritmética (pois R = constante). Portanto: DE = 2BC, FG = 3BC, HI = 4BC, etc. O que significa isso? Significa que o que vai determinar se a luz será refletida ou transmitida é a espessura da camada laminar no ponto de incidência [44].

Mas.... Como é que o raio de luz, ao atingir a primeira superfície da lâmina delgada, toma conhecimento da espessura da mesma, ou da distância entre as duas superfícies? Os adeptos da teoria ondulatória terão a resposta pronta: este raio irá interferir com outro que já atravessou a lâmina e foi refletido pela segunda superfície.

Pensando-se em termos de luz material, o processo não pode ser este, pois tudo indica não existir este tipo de interação, ou interferência, entre hipotéticos corpúsculos e/ou raios de luz. O fenômeno é, neste caso, altamente sugestivo de que a reflexão, a produzir os anéis, se dá não na primeira, mas na segunda superfície da lâmina delgada. Antes de elucidar como isto pode acontecer, vou expor no próximo subitem, e de outra maneira, a progressão aritmética (1, 2, 3, 4, 5..., etc) encontrada entre os valores da espessura da lâmina nos locais onde ocorrem os máximos de reflexão e refração; para que fique clara a existência de uma periodicidade espacial.

5.3.5 Uma experiência de pensamento

Vou apelar aqui para uma exposição hipotético-didática efetuada por Biot [45] e que não deixa de ser uma experiência de pensamento. A figura 49, com três seções (49a, 49b e 49c), servirá para ilustrar a exposição. Em 49a reproduz-se a experiência original (trata-se da figura 47 com mais detalhes). Notar que os raios refratados trafegam pela lâmina delgada praticamente sem sofrerem desvios (uma figura equivalente a esta é encontrada no livro de Newton [46]).

Figura 49
Figura 49: Ilustração da experiência de pensamento de Biot [45] explicada no texto.

Na parte central temos a figura 49b com a experiência de pensamento. A ideia é conservar, do ponto de vista fenomenológico, o que é observado na experiência original, porém sob um ponto de vista imaginário. Ao invés de uma lâmina delgada de espessura variável, Biot imaginou uma lâmina delgada de faces paralelas (S e S´) e tal que a face S´ possa se mover, afastando-se ou aproximando-se de S. Com isto a espessura do meio ar, situado entre as mesmas, varia concomitantemente. A situação é totalmente hipotética e tal que o ar conserve suas propriedades (não há rarefações ou condensações devidas ao movimento de S´). Pode-se pensar também que este meio é o vácuo. O outro meio (meio 1 na figura) pode ser o vidro ou qualquer outro meio transparente de índice de refração maior do que o do ar. Os raios incidem perpendicularmente a S, conservando a seguir a direção, qualquer que seja o sentido a suceder. A direita tem-se as posições da lâmina S´ onde ocorrem os máximos de reflexão (cinza claro) ou de refração (cinza escuro) dos raios, e a corresponder aos pontos C, E, G, I, L, N, P e R da experiência original. A figura 49c, por outro lado, ilustra uma das possíveis maneiras de se representar a intensidade dos raios refletidos ou refratados pela superfície S´, deixando nítida a ideia de periodicidade espacial.

5.3.6 Fits de fácil reflexão ou de fácil refração

Vimos no subitem 5.3.4 que, para atender a ideia de luz material, a reflexão ou a refração, produzida por uma lâmina delgada, deve ocorrer na segunda superfície interceptada pela trajetória do raio de luz, e não na primeira. A primeira deixaria o raio passar incólume. Não obstante, as duas superfícies respondem pelo que irá acontecer (reflexão ou refração), pois o fator determinante é a distância entre as mesmas. Vimos também que a distância BC se comporta como uma propriedade física, relacionada à cor da luz que está sendo estudada, e a ser denotada daqui por diante pela letra l.

Em virtude da periodicidade espacial a regular o fenômeno (figura 49c), percebe-se que quando o raio se encaixa entre as duas superfícies segundo um comprimento igual a l, ou múltiplos ímpares deste valor, ocorrerá a reflexão; e quando ele se encaixa segundo um comprimento 2l, ou qualquer outro múltiplo par de l, ocorrerá a refração. Podemos então representar os raios segmentados, como mostrado na parte superior da figura 50. Utilizei dois tons de cinza para destacar a existência deste comprimento l ou de uma propriedade relacionada à cor manifestada pelo raio considerado.


Figura 50

Figura 50: Acima: Representação de um raio de luz em acordo com
a teoria dos fits. Abaixo: Representação dos fits (encaixes) em três
situações diversas e de acordo com a experiência de pensamento
de Biot (superfície S’ em movimento).

Com isso em mente, vamos tentar entender a que Newton estava se referindo quando falou em fits de fácil reflexão ou fits de fácil refração. Fit é uma palavra inglesa que, dentre outros significados, pode ser traduzido para o português por encaixe, ajuste, adaptação (substantivos), ou então por caber, ajustar, assentar (verbos) [47]. Pois bem, de acordo com Newton, e interpretando a figura 50, poderíamos dizer que em (3) o raio retorna à disposição que tinha em (1), qual seja, à disposição de ser refletido pela lâmina delgada. A cada um dos retornos à disposição do raio ser refletido (3l, 5l, 7l, etc.) Newton chama por fit de fácil reflexão. Portanto, os fits de fácil reflexão são condições em que os raios ocupam, no meio considerado (azul na figura), comprimentos iguais a l, 3l, 5l, 7l etc. Mutatis mutandis, os fits de fácil refração são condições em que os raios ocupam comprimentos iguais a 2l, 4l, 6l, 8l, etc. É importante não confundir o comprimento de um fit qualquer com o comprimento l. Este último é uma unidade de comprimento a depender da cor considerada, e um fit, pelo menos em teoria, pode ter qualquer comprimento expresso em números inteiros da unidade l.

O espaço que o raio percorre entre um encaixe (fit) de um determinado tipo (reflexão ou refração) e o imediatamente seguinte do mesmo tipo, Newton chama por intervalo entre os encaixes (ou intervalos entre os fits). Notar que este intervalo é sempre igual a 2l, seja para o caso da reflexão, seja para o caso da refração. Consequentemente, a cada distância igual a 2l o raio sempre repetirá suas propriedades. Qualquer semelhança entre 2l e o comprimento de onda l da teoria ondulatória, não é mera coincidência. Conforme afirma Assis [48], as medidas de Newton foram tão precisas que Young as utilizou mais de cem anos depois para calcular o que hoje chamamos de comprimento de onda da luz.

Outros experimentos efetuados por Newton [49] mostram que essas alternâncias entre condições de fácil reflexão e fácil refração são observadas em vidros espessos, da ordem de um quarto de polegada. Nestes casos o comprimento dos fits é da ordem de 34.000l, a demonstrar que um único raio de luz conserva a sua individualidade até distâncias desta ordem (1/4 de polegada = 0,625cm) e, provavelmente, até distâncias muito maiores e a englobar todo o raio. Assumindo o raio de luz como sendo a unidade estrutural de um feixe de luz, o maior fit teria o comprimento do próprio raio.

5.4 Comentários relacionados a assuntos tratados no subitem 5.3

Necessária se faz a apresentação de três comentários. O primeiro relaciona-se a algo implícito à figura 50, porém que não chega a ser notado à primeira vista. Para que fique claro, vamos considerar o caso em que o raio incide obliquamente na superfície S (figura 51). Percebe-se aí que o raio viaja de S a S’ por uma distância igual a 3l. Sendo o índice ímpar, o raio será refletido. Porém, quando ele retorna de S’ para S, ele também viaja a mesma distância e, não obstante, é agora transmitido. Experimentalmente é isso o que acontece, pois do contrário o raio ficaria aprisionado entre as duas superfícies paralelas por reflexões sucessivas, independentemente da espessura da lâmina (delgada ou não) desde que a distância percorrida entre S e S’ fosse igual a um múltiplo ímpar de l. O aprisionamento realmente não ocorre.

figura 51

Figura 51: Explicação no texto.

O paradoxo se resolve ao verificarmos que as duas situações não são idênticas. O que chamamos de primeira superfície é aquela em que o raio de luz, saindo do meio 1, atravessa essa superfície, entrando em outro meio (meio 2) e, aí sim, encontra uma segunda superfície na qual ocorrerá o efeito (binômio reflexão-refração) a depender do comprimento da trajetória percorrida neste segundo meio. No segundo caso, quando o raio de luz volta de S’ para S, ele não está entrando no meio 2 e, portanto, a primeira superfície continua sendo S. Em outras palavras, de A até B (figura 51) o raio percorre a distância 3l (múltiplo ímpar de l), logo será refletido em S’; e de A até C o raio percorre a distância 6l (múltiplo par de l), logo será transmitido em S. Neste caso e para efeito de teoria dos fits, no ponto A, a superfície S está se comportando como sendo a primeira superfície, enquanto no ponto C, ela se comporta como sendo a segunda superfície.

O segundo comentário é relativo à Proposição XIII (Livro II – Parte 3) da Óptica de Newton [50]. Para explicar o porquê de alguns raios serem refletidos e outros refratados quando incidem na superfície de corpos espessos transparentes (superfície única, no caso), Newton afirmou que eles já estariam, de alguma forma, na condição (ou fit) de fácil reflexão ou de fácil transmissão, e vai além: esta condição seria assumida no ato da emissão pelos corpos luminosos (fontes de luz) e continuaria durante toda a sua trajetória. Para aceitarmos a interpretação de fit como encaixe, teríamos que assumir que a primeira superfície seria a da fonte de luz, e a segunda a do objeto de estudo (o corpo espesso transparente). Ora, em muitos casos essa distância assume valores incomensuráveis, da ordem de anos-luz, e não creio que o encaixe responda pelo que seria observado (reflexão ou refração). Nestes casos, a meu ver, a dualidade comportamental deve se sujeitar a outra explicação, esteja ou não relacionada à teoria dos fits de Newton. Voltarei a este tópico em 5.7.

O terceiro comentário relaciona-se ao fato de entre a primeira experiência efetuada por Newton com lâminas transparentes delgadas e a constatação da existência de um princípio geral [51] válido para qualquer superfície refratora, cerca de quatro décadas se passaram. Após esse tempo e, verificada a validade do princípio tanto para lâminas delgadas quanto espessas, Newton reescreveu a sua Óptica, incorporando a teoria dos fits; e contentou-se com o fato dos fits se adaptarem ao princípio citado, deixando de lado interpretações ou comentários anteriores, haja vista não estarem sujeitos a comprovações experimentais. Portanto essas interpretações ou comentários efetuados em edições anteriores ou, até mesmo, algumas(ns) que permaneceram na última edição, devem ser apreciadas(os) com muito cuidado e não como hipóteses a fazerem parte da teoria da luz de Newton.

5.5 A teoria dos fits e a estrutura dos raios de luz

Em 3.5 propus a ideia de raio de luz material formado por corpúsculos enfileirados, como em um colar de pérolas. A figura 52a ilustra a ideia. Este raio seria dotado de uma certa flexibilidade (elasticidade) devido a um campo de coesão entre corpúsculos contíguos. Por outro lado, em 5.3.6 observamos que este mesmo raio pode ser representado por segmentos enfileirados de dois tons de cinza e alternados, como mostra a figura 52b. Associando as duas ideias, concluímos pela existência de dois tipos de corpúsculos de luz, A e B, que se dispõem, na extensão do raio, segundo uma sequência binária: A-B-A-B-A-B-A-B-A-B... etc. (figura 52c). Para luzes de cores diferentes, os corpúsculos seriam os mesmos, variando apenas as distâncias l entre corpúsculos contíguos. Vejamos então como essa estrutura corpuscular binária se adapta à teoria dos fits.


figura 52

Figura 52: Explicação no texto.

Vamos supor um raio de luz de uma cor específica incidindo em um ponto de uma bolha feita com água e sabão depositada sobre uma superfície lisa e num local onde a espessura da bolha é igual a h. O raio é refratado na primeira superfície (limite ar-bolha) e segue uma trajetória de comprimento l até atingir a outra superfície (limite bolha-ar). Se l for igual à distância entre dois corpúsculos contíguos, ocorrerá a reflexão como mostra a figura 53a, à esquerda. A cada instante que um corpúsculo do tipo A interage com a primeira superfície, uma interação concomitante será observada na segunda superfície, porém agora com um corpúsculo do tipo B, e vice-versa.

Figura 53
Figura 53: Explicação no texto.

À direita da figura 53 está representado o que acontece em um local em que a espessura da bolha é igual a 2h. Se o raio de luz incidir sob o mesmo ângulo que o do caso anterior, ele irá percorrer agora a distância 2l, até atingir a segunda superfície, sendo aí refratado. Neste caso, se um corpúsculo do tipo A estiver interagindo com a primeira superfície, a interação concomitante observada na segunda superfície será também com um corpúsculo do tipo A. Mutatis mutandis, se o primeiro corpúsculo for do tipo B, o outro também será.

5.6 Sobre a Interação propriamente dita

Seguindo regras metodológicas newtonianas [52], não há porque pensarmos que a interação observada nos exemplos acima (5.4 e 5.5), entre cada um dos corpúsculos (A ou B) com partículas das superfícies do meio de separação, seja diferente da interação do tipo III, aquela observada quando o raio se propaga em um meio qualquer. Não obstante, há que se destacar duas diferenças: 1) Na interação tipo III as partículas do meio ou estão livres, ou submetidas a forças de coesão por parte de suas semelhantes e similares de todos os lados; essas forças praticamente se anulam (meios isotrópicos), a não ser pelo fato de estabelecerem a coesão entre as partículas, dando assim uma certa flexibilidade ao meio. A isotropia se desfaz na superfície de separação com outro meio, o que pode se traduzir aí por um efeito diverso. 2) Na interação que ora estamos discutindo, um segmento do raio está encaixado entre as duas superfícies de maneira tal que o efeito da interação com uma das superfícies pode, eventualmente, interferir com o efeito da interação com a outra superfície. Resumindo, conquanto a causa possa ser a mesma, o efeito pode ser diverso.

A essa dupla interação do tipo III com encaixe entre superfícies chamarei por Interação do tipo IV. Podemos então imaginar que no caso em que os corpúsculos são diferentes (figura 53a), as interações promovem um afastamento entre os corpúsculos, surgindo uma tensão no segmento de raio encaixado, decorrendo daí uma facilitação à reflexão. Do contrário, se o encaixe se der com corpúsculos do mesmo tipo (figura 53b) a tensão não ocorre e o resultado será o mesmo que o observado com duas interações sequenciais do tipo III, quando o raio de luz se propaga em um meio qualquer.

5.7 Escólio

Alguns assuntos expostos neste item 5 ficaram a merecer melhor explicação, ainda que sob um ponto de vista meramente conjectural. O que se segue tentará cobrir esta lacuna.

Comecemos pelos corpúsculos A e B. O que os diferencia? A rigor não há porque serem estruturalmente diferentes, bastando apenas que estejam dotados de movimentos intrínsecos diferentes (por exemplo: giro sobre si mesmo ou oscilação). Assim sendo, a diferença assumida poderia ser de natureza puramente mecânica e, neste caso, os corpúsculos seriam idênticos. Voltaremos a este assunto no item 6.

Outro assunto refere-se a como poderia se dar a interação entre os corpúsculos A ou B com as partículas do meio. Newton, de uma maneira bastante sutil, chegou a sugerir como poderia se dar esta ação para o caso de lâminas transparentes delgadas: Que tipo de ação ou disposição é essa; se consiste em um movimento circular ou vibratório do raio, ou do meio, ou qualquer outra coisa, eu não o indago aqui [53]. Ou seja, ele não indagou mas citou e/ou sugeriu. De fato: o movimento circular ou o vibratório poderiam responder tanto pelo atraso, discutido no item 4 (interação III), quanto pela tensão, no sentido de distender ou não o segmento de raio encaixado entre as duas superfícies, como visto em 5.6. A figura 54 ilustra dois possíveis tipos de movimento circular a que o raio de luz poderia estar sendo forçado a descrever em virtude de sua interação com alguma partícula da superfície considerada de uma lâmina delgada (superfície 2 no caso). Dependendo da outra interação que o mesmo raio está sofrendo (com a superfície 1), poderia ocorrer nesta segunda superfície ora a reflexão, ora a refração [comparar com a figura 43 onde ocorre apenas a transmissão].

Figura 54

Figura 54: Explicação no texto.

Vamos agora estender o segundo comentário efetuado em 5.4 relativo à Proposição XIII de Newton. No caso de corpos transparentes espessos, a superfície de entrada tanto pode refletir a luz, quanto refratar. A luz transmitida (ou refratada), como vimos, irá se adequar à teoria dos fits ao chegar à segunda superfície, ou superfície de saída. Que dizer então da luz que é refletida nesta primeira superfície, ou superfície de entrada? Neste caso irá desempenhar um papel importante a quebra da isotropia descrita em (1) do primeiro parágrafo do subitem 5.6. Reflexão e transmissão estarão sujeitas a como a partícula da superfície irá reagir à interação, ou seja, até que ponto o aprisionamento desta partícula, devida à coesão superficial, irá interferir com a interação (notar que a trajetória circular descrita pelo raio de luz não precisa ser exatamente aquela mostrada na figura 54, mas pode ter uma orientação espacial variável de partícula para partícula). Ocorrendo a reflexão, ela se dará de forma a simular um choque elástico, e no caso da refração ela se dará de forma semelhante à interação elástica descrita em 4.2. Segundo essa explicação, não há a necessidade de assumir a hipótese de que os raios adquirem a condição (ou fit) de fácil reflexão ou de fácil transmissão no ato de sua emissão pelos corpos luminosos (fontes de luz). No caso das lâminas transparentes delgadas a coesão acima descrita é suficiente para manter a superfície íntegra (como no caso da bolha de água e sabão, por exemplo), mas insuficiente para proporcionar a reflexão dos raios de luz na superfície de entrada e, portanto, e como descrito em 5.3.6, a superfície deixa o raio passar incólume.

 

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