Como é que um campo imaterial pode interagir com a matéria

framesAlberto Mesquita Filho

 

Editorial - Integração IX(34):163-4,2003

É inconcebível que a matéria bruta inanimada possa, sem a mediação de alguma coisa, que não é material, atuar sobre e afetar outra matéria sem contato mútuo, como deve ser, se a gravitação no sentido de Epicuro for essencial e inerente a ela. E esta é uma razão pela qual desejo não me seja atribuída a gravidade inata.
Isaac Newton [1]

Conversa de Botequim

Em 19/8/03, na lista de discussão Conversa de Botequim da Internet brasileira [2], o professor José Carlos [3], ciente de que sou um defensor inveterado da física clássica genuinamente newtoniana, questionou-me sobre o famoso pensamento, acima reproduzido, de Isaac Newton. Sua dúvida era a seguinte:

Eu continuo querendo compreender melhor como é que um campo imaterial pode interagir com a matéria conforme as noções newtonianas de força.

Segue-se a minha resposta:

Caro professor

Não é fácil traduzir a justificativa em palavras. Tentarei, mas com a certeza de que numa certa etapa da explicação, quando estivermos diante do que poderia ser chamado a causa última, seremos forçados a adotar uma atitude pragmática.

Já citei, em mensagem anterior, qual seria o princípio fundamental a justificar a lógica de meus argumentos. Trata-se do princípio de Le Chatelier, da físico-química: Modificando-se uma das condições que definem o estado de um sistema em equilíbrio, o mesmo responde opondo-se a esta alteração. Note que é um princípio norteador, a exemplo do princípio da causalidade. Não se presta a um equacionamento imediato, a exemplo das leis da física. Ele é muito geral para comportar equações. Aliás, tenho notado que, por trás das leis da física, quase sempre é possível enunciar um princípio mais geral.

Esse princípio pode ser verificado não só na físico-química (lei da ação das massas), como na física (lei de Lenz, princípio de Arquimedes, ação e reação etc.) e até mesmo nas ciências humanas.

Eu diria ainda que o “andar no vácuo”, dos automobilistas, seria algo a corroborar o princípio de Le Chatelier. O carro da frente, ao ser acelerado, tenta se afastar do carro de trás. De alguma forma, o motorista da frente está tentando romper o equilíbrio, que representaria a manutenção da distância entre os carros (pela inércia pura e simples, os carros não acelerados deveriam conservar essa distância). De que maneira o sistema iria se opor a essa alteração? De alguma maneira impedindo o distanciamento dos carros. Como o carro da frente está sendo acelerado, alguma coisa como que puxaria o carro de trás, e é exatamente isso o que os automobilistas dizem acontecer.

É perfeitamente possível explicar isso sem a necessidade de se apelar para o princípio de Le Chatelier, mas quero salientar que o princípio prevê esse acontecimento. Foi nesse sentido que disse tratar-se de um princípio “norteador”. Ele funciona, e isso é o que importa. Se nos guiarmos por esse pragmatismo, poderemos nos contentar com o princípio e deixar a explicação de lado.

Será que o princípio seria válido sempre? Em outras palavras: de posse do princípio poderíamos prever acontecimentos ainda não observados ou então já observados, mas ainda sem outra explicação lógica e convincente?

Imagine duas partículas idênticas, situadas num vácuo perfeito, e ambas em repouso em relação a um observador. Imagine mais, que essas partículas sejam realmente elementares e, como tais, ainda não sejam capazes de gerar a gravitação. Absurdo? Nem tanto. Se eu acho que seria possível explicar a gravitação no sentido apontado por Newton, a gravitação não seria inata e inerente à matéria. Logo, a matéria por si só não atrai a matéria, mas somente passará a atrair quando ganhar um certo grau de complexidade, quando adquirir as características do que conhecemos como matéria macroscópica, pois esta sim, comprovadamente exerce atração gravitacional, como demonstrado, se não me falha a memória, por Cavendish.

Que dizer do repouso? Digamos que neste referencial, que poderia ser o referencial absoluto tão procurado por Newton, não houvesse nenhuma outra interação entre as partículas. Seria isso verificável em qualquer outro referencial? Bem, deixemos este último questionamento para depois.

Nesse referencial, em que as partículas estão em repouso e livres da ação de forças, elas permanecerão indefinidamente em repouso. O que acontecerá se conseguirmos de alguma maneira imprimir uma certa velocidade a uma das partículas, digamos, na direção da reta que as contém e de tal forma que se afastem? Pela lei da inércia esta partícula prosseguirá em seu caminho, mas... O que acontecerá com a outra? Será que ela continuará livre da ação de forças? Será que neste caso o princípio de Le Chatelier desempenharia algum papel? Será que a segunda partícula seria atraída na direção do movimento da primeira, e em decorrência disso reduziria a velocidade da primeira (conservação da energia)? Se isso acontecer, a explicação que se dá para o andar no vácuo dos automobilistas não poderia ser aqui aplicada. No caso macroscópico conseguimos resolver o problema apelando para o estudo de diferenças de pressão e, após algumas encucações, entendemos como ocorre a transferência da energia de um dos carros para o outro. Mas neste caso elementar as duas partículas já estão no vácuo, logo essa explicação deixa de funcionar. Mas... Pense bem! No andar no vácuo dos automobilistas a explicação não chega às raízes do problema, ou seja, pára no nível macroscópico. Se formos analisar a fundo o problema, chegaremos a algo do tipo observado com as partículas elementares. Pois entre uma partícula de ar e outra não existe nada que não seja o vácuo, não é verdade? Perceba então que a explicação pára exatamente no nível pragmático que nos convém, a partir do ponto em que aceitamos as evidências sem ir atrás de um porquê mais abrangente. E esse porquê mais abrangente parece só ter uma explicação lógica se o princípio de Le Chatelier for uma verdade universal, um princípio da natureza observável e dando origem a uma teorização passível de críticas, mas a comportar uma lógica condizente com o que se observa.

Voltando ao microcosmo... O que é que faz a primeira partícula atrair a segunda? Estamos no vácuo, assumindo que espaço não é matéria e que o éter, no sentido de sede de ondas, não existe. Ora, alguma coisa está se manifestando, esta coisa está exercendo uma ação, esta coisa está dando provas de sua existência, e esta coisa, pelas hipóteses que assumimos, não é material. Logo, o Universo não está constituído apenas de matéria e espaço, mas também de alguma coisa imaterial, tão real quanto a matéria que a gera, desde que esta partícula esteja em movimento em relação a um referencial absoluto. Veja então que estou precisando lançar mão de um referencial especial, aquele a caracterizar o movimento absoluto, mas isso não é problema, pois estamos tentando justificar um mundo genuinamente newtoniano.

Mas, se esta coisa existir, ela passou a existir à medida que imprimimos um movimento a uma das partículas, não é verdade? É de se esperar que após um certo tempo as partículas se equilibrem, as forças se anulem e elas prossigam em seu movimento em obediência à lei da inércia. Eu poderia pôr o observador no referencial das partículas, e ele notaria agora o retorno de seu Universo ao repouso. Mas seria esse repouso idêntico ao anterior? Aparentemente sim, mas com algumas pequenas diferenças. Neste “novo” Universo as partículas estão numa distância maior do que no Universo primitivo (a oposição do princípio de Le Chatelier nunca é no sentido de refazer totalmente a condição primitiva, mas sempre deixa marcas como esta). Neste “novo” Universo existe a informação do movimento, que aparentemente não está mais exercendo nenhum efeito. Isso que estou batizando com o nome de informação do movimento da matéria poderá ser encontrado em vários textos de Newton como espírito da matéria.

Até aqui quero crer ter respondido a metade de seu questionamento: como um campo imaterial pode interagir com a matéria... Fico devendo a segunda parte: ...conforme as noções de força newtoniana? Em outras palavras, até aqui estou a fazer uma física que se apóia apenas numa suposta filosofia natural, quiçá uma filosofia de botequim. Será que esta física seria condizente com os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural? O que dizer da aplicação da conservação de momento, acoplada à conservação de energia, ao universo de duas partículas? A lei da inércia é verdadeira ou seria um artifício? Não tenho dúvidas de que qualquer físico que tentar aplicar esses conceitos encontrará uma, duas ou mais falácias na argumentação que apresentei acima. E agora? Como ficamos? Notem que não defini massa, não defini energia, não defini nada além de aceitar a existência dos indefiníveis, ou essenciais da física genuinamente newtoniana: espaço, matéria, movimento e informação do movimento da matéria (espírito da matéria).

Consequentemente, será preciso tomar muito cuidado ao se analisar minha argumentação à luz de conhecimentos vinculados a idéias que fazemos sobre o que seja massa, o que seja energia, o que seja inércia... Bem, mas essa é uma outra história, que fica para uma outra vez.

Em tempo: a idéia aqui apresentada é bastante antiga, mas estou aproveitando este debate para efetuar uma autocrítica, logo estou apresentando algumas novidades sob um prisma que nunca analisei antes. Não é impossível que eu tenha de rever ou modificar os argumentos apresentados, ou mesmo abandonar minhas teorias, caso não consiga modificar e/ou justificar de maneira decente a argumentação acima apresentada. Consequentemente, não interprete nada disso como uma verdade absoluta, mas sim como um simples exercício de dialética. Como diria Popper: sou um racionalista. Por racionalista entendo um homem que deseja compreender o Mundo e aprender por meio da discussão com outros homens. (Note-se que eu não digo que um racionalista sustente a teoria errada segundo a qual os homens são total ou parcialmente racionais.) Por “discutir com os outros” entendo, mais em especial, criticá-los; solicitar a crítica deles; e tentar aprender com isso. A arte da argumentação é uma forma peculiar da arte de combater — com palavras em vez de espadas —, uma arte inspirada pelo interesse em nos aproximarmos da verdade acerca do Mundo [4].

A.M.F.


Referências:
  1. In LACEY, H.M. (1972): A linguagem do espaço e do tempo, São Paulo: Perspectiva
  2. http://br.groups.yahoo.com/group/Conversa_de_Botequim
  3. Idealizador e moderador da lista de discussão citada.
  4. POPPER, Karl R. (1956). Acerca da inexistência do método científico. Texto lido num encontro dos Fellows of the Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences, em Stanford, Califórnia, em novembro de 1956 e transformado em Prefácio do livro de Karl R. POPPER, O Realismo e o Objectivo da Ciência, Lisboa, 1987.

DHTML Menu By Milonic JavaScript