A importância da intuição (1)

framesAlberto Mesquita Filho

 

Editorial - Integração VII(27):243-4,2001

Se o senhor quer estudar em qualquer dos físicos teóricos os métodos que emprega, sugiro-lhe firmar-se neste princípio básico: não dê crédito algum ao que ele diz, mas julgue aquilo que produziu. Porque o criador tem esta característica: as produções de sua imaginação se impõem a ele, tão indispensáveis, tão naturais, que não pode considerá-las como imagem de espírito, mas as conhece como realidades evidentes.
Albert Einstein [2]

Não é fácil conceituar a intuição. Se perscrutarmos os dicionários, encontraremos algo do tipo: a intuição é o ato de ver, perceber, discernir, pressentir [3]. Fica-nos, então, aquela impressão de que a intuição é o ato de ver algum objeto ou fenômeno de maneira diferente daquela normalmente vista pela maioria das pessoas que olham para esse objeto ou fenômeno. Por exemplo: bilhões de pessoas, no decorrer de milhares de anos, já devem ter se deparado com um cenário, ao cair da tarde, onde, por trás de uma macieira repleta de frutos suspensos por pedúnculos, visualiza-se a Lua, fixa no firmamento. Quantos viram algo além de maçãs e da Lua? Pois é bem possível que num cenário como este e em seu sítio, em Woolsthorpe, o jovem Isaac Newton, com apenas 24 anos de idade, tenha visualizado, além de maçãs e da Lua, a inércia retilínea e a atração entre corpos com massa. Entre a visão normal, ou o ato puro e simples de olhar, e a visão sofisticada, qual seja, o ato de ver, de perceber, de discernir, de pressentir, reside o segredo da intuição, também descrita como a contemplação pela qual se atinge a verdade por meio não racional [3]. Vamos, então, trabalhar um pouco mais este conceito no sentido de esclarecer o que aqui entendemos por verdade e por que o processo intuitivo seria não racional.

O cientista é, diferentemente dos outros, um homem que procura pela verdade e que, portanto, assume a existência dessa verdade. Nessa procura, admite como certo o que poderíamos chamar de verdade provisória. Digamos, então, que esta última seja o que consideramos como verdade científica, e o que a distingue das demais verdades provisórias, encontradas pelos que não são cientistas, seria o seu acoplamento ao método científico ou à experimentação. Para resumir, poderíamos dizer que a verdade científica é uma verdade provisória tomada por empréstimo da natureza e da forma como ela aparenta ser [4]. As hipóteses e conjecturas científicas assumem, com frequência, esse papel de verdades científicas. Digamos, então, que o primeiro passo, mas não o único e/ou o derradeiro, para chegarmos às verdades científicas seria a contemplação da natureza.

A não racionalidade, atribuída à intuição, retrata o seu caráter essencial, mas não engloba, propriamente, todo o processo intuitivo. Digamos que se refere ao insight ou estalo ou, ainda, à percepção de alguma coisa estranha, não notada nas outras vezes em que se observou o mesmo objeto ou fenômeno. É óbvio que esta percepção, ao ser trabalhada racionalmente, poderá vir a se constituir numa conjectura ou hipótese. No entanto, mesmo antes de formularmos uma conjectura ou hipótese, já estamos frente a algo a que podemos associar o conceito de verdade provisória. Existe um conceito popular a dizer: Gato escaldado tem medo de água fria. Seria isto equivalente a admitir que o gato raciocina? Seria isto coerente com a afirmação de que o gato formula hipóteses (a água queima) e as generaliza (as próximas águas queimarão)? Provavelmente não! Podemos, pelo exemplo, simplesmente inferir que o gato está dotado de uma intuição primitiva e da capacidade de memorizar fatos e, em consequência disso, em condições de aprender por um meio não racional.

Se a ciência experimental começa pela intuição, poderíamos concluir que o intuitivismo é a base fundamental de todos os conhecimentos humanos oriundos das ciências empíricas. É importante não confundir intuitivismo com intuicionismo. Este último relaciona-se à doutrina que faz da intuição o instrumento próprio do conhecimento da verdade: ver para crer. Mesmo porque o cientista parte da contemplação do que realmente existe, e interpreta esta verdade seguindo um raciocínio lógico aprisionado ao método científico. O cientista, então, parte da verdade (intuitivismo) e procura por novas verdades científicas por meio da construção e da corroboração de teorias. Afirmar que a ciência começa pela intuição é, portanto, bem diferente de dizer que a ciência começa pela observação. Críticas a este segundo posicionamento podem ser encontradas no livro de Chalmers [5] e o contraste entre as duas posições está relatado no artigo, já citado, que escrevi sobre o método científico [4].

É comum contemplarmos a natureza por vias indiretas. Newton, por exemplo, conhecedor da inércia circular de Galileu, viu a Lua em movimento e deve ter associado este movimento à desnecessidade de um pedúnculo para que a Lua permanecesse a uma distância fixa da Terra, o que não acontecia com as maçãs. Ou seja, Newton contemplou a natureza com conhecimentos adquiridos em seus estudos, o que é diferente de observar um fenômeno sem conhecimento algum.

Einstein, por outro lado, contemplou a natureza utilizando-se unicamente da imaginação e de seus conhecimentos prévios, deixando a observação momentaneamente de lado. Seus conhecimentos sobre eletromagnetismo, aos quinze anos de idade, relacionavam-se a brincadeiras com uma bússola ganha na infância e ao que pôde aprender no segundo grau a respeito do eletromagnetismo vigente na época. Certamente ouviu falar sobre a experiência de Oersted, em que a bússola sofre uma deflexão ao ser colocada nas vizinhanças de um fio conduzindo uma corrente elétrica. A teoria de Maxwell explicava o fenômeno afirmando que o campo elétrico gerado por cargas em movimento (corrente elétrica) manifestar-se-ia em objetos em repouso (no caso, a bússola) como um campo magnético; daí a deflexão sofrida pela bússola. De alguma maneira, parte do campo elétrico transformava-se em magnético em virtude do movimento. Por um mecanismo do mesmo tipo, pelo menos em sua origem, a teoria de Maxwell explicava também o caráter eletromagnético da luz: campos elétricos e magnéticos iriam se alternando à medida que a luz se propagasse. Em essência, foram essas as referências utilizadas pelo jovem Einstein para construir o cenário onde visualizou o nascimento de sua teoria da relatividade. Ele simplesmente imaginou estar lado a lado com uma onda eletromagnética. E percebeu que, a ser verdadeira a teoria de Maxwell, neste cenário construído os campos elétrico e magnético estariam em repouso. Como explicar, neste repouso, a alternância entre os campos elétrico e magnético? Como explicar a coerência da teoria de Maxwell frente ao que lhe pareceu ser um absurdo? A saída encontrada foi conjeturar sobre a impossibilidade em se acompanhar uma onda eletromagnética. Daí, para afirmar que a constante c, inerente às equações do eletromagnetismo, é universal e independente do referencial utilizado, ele se valeu de um trabalho de refinamento de sua conclusão primeira, o que foi possível graças a seus conhecimentos sobre a teoria de Maxwell bem como à sua tentativa de compatibilizá-la com a relatividade de Galileu; este trabalho foi concluído por Einstein aos 25 anos de idade e publicado sob o título de Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento.

A.M.F.


Referências:
  1. Este assunto é apresentado com mais detalhes em Ensaios sobre a filosofia da ciência, capítulo 2.
  2. EINSTEIN, A.: Como Vejo o Mundo, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981, p.145.
  3. FERREIRA, A.B.H. (1975): Novo Dicionário Aurélio, Ed. Nova Fronteira S.A., Rio de Janeiro.
  4. MESQUITA FILHO, A.(1996): Teoria sobre o método científico, Integração II(7):255-62,1996.
  5. CHALMERS, A.F. (1976): O que é ciência afinal?, Ed.Brasiliense, São Paulo, (1993 - tradução), São Paulo.
Temas relacionados:
  1. O vácuo lógico e a intuição (mensagem do news uol.educacao.ciencia, 2001)
  2. Intuitivismo vs intuicionismo: mensagem 11 da thread "Velocidade da luz" (pt.ciencia.geral)

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